terça-feira, 5 de maio de 2009

“Eterna tortura” - vejam relato de Lucia Alves, filha de Mário Alves (PCBR)

Lucia Alves Vieira Caldas (*)

Dúvidas, certezas, desistências, inquietação, tentativas e resistências. Cobrar esclarecimentos? Receber ou doar as indenizações de direito? Não falar ou escrever sobre esse sofrimento para não perpetuar tanta dor de perdas, medos e marginalização? É uma eterna tortura relembrar o suplício do meu pai, Mário Alves, e o sofrimento da minha mãe, tantos amigos vitimados. Saber que a impunidade continua é doloroso.

Mário Alves morreu sob tortura, em 1970. Foi reconhecido oficialmente como o primeiro "desaparecido político" do Brasil, depois de um processo judicial. Militante comunista durante três décadas (dos 16 aos 47 anos de idade), chegou ao terceiro posto na hierarquia do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Jornalista, dirigiu as principais publicações do PCB, entre elas "Momento", "Novos Rumos" e "Voz Operária". Em 2007, no governo do presidente Lula, foi prometida a abertura dos arquivos militares, a divulgação da verdade sobre os crimes da ditadura militar. Já se fez o reconhecimento dos combatentes e de alguns de seus algozes, os falecidos. Já se fez a coleta de sangue para identificação de familiares dos desaparecidos, por exame de DNA, caso seja encontrado algum cemitério clandestino. Falta investigar violações e responsabilizar culpados. Não suportamos saber que torturadores notórios ocupam cargos públicos, pleiteiam anistia política, dão aulas em nossas universidades e o nosso governo não os pune.

A lei 9.140, do governo FH, prometeu atender à reivindicação dos familiares - investigar e esclarecer os crimes, com devolução dos restos mortais. Não foi cumprida. Certidões de óbito foram padronizadas para "desaparecidos políticos". Os cartórios se recusavam a registrar essa aberração e apenas citavam "conforme a lei 9.140". Consegui, em Niterói, uma certidão mais detalhada, que menciona o local onde meu pai foi torturado e "desaparecido", graças à sensibilidade da tabeliã.

Em 1980 a Justiça responsabilizou a União pelo sequestro, a prisão ilegal, a tortura e o assassinato do meu pai, Mário Alves de Souza Vieira. Foi um reconhecimento importante na luta contra as atrocidades do regime militar. Minha mãe, Dilma Borges Vieira, não pediu indenização.

O pior já havia nos acontecido, perder meu pai - irreparável. Foram-nos negados os restos mortais para um velório e enterro dignos. Jamais os militares forneceram informações sobre o destino dos "desaparecidos políticos".

Nasci em 1947, durante a ilegalidade do PCB. Fui gerada na insegurança da clandestinidade. Minha mãe teve a placenta prévia e parto prematuro. Fui uma criança frágil, adoecia muito, sempre insegura e com muito medo. Aos 20 anos vivi a clandestinidade imposta aos opositores da ditadura militar. Perdi meu pai em 1970, quando ele tinha 47 anos. Tenho dificuldade de pleitear os benefícios da anistia. Pagar não apaga os erros, os danos não desaparecem, mas as reparações mitigam consequências como perda de trabalho e aposentadoria, invalidez, doenças causadas pelo sofrimento moral, isolamento social. Minha mãe faleceu devido ao longo pesar pela perda do meu pai, em condições tão trágicas. Tenho crises de transtorno do pânico que me impedem de sair de casa sozinha. Para não ocupar a família, quase não saio e fico cada vez mais deprimida. Além das condições emocionais, problemas de saúde invalidantes - artrite-reumatóide, artrose em vários segmentos da coluna e das pernas - prejudicam minha mobilidade. Se o tempo não pode ser recuperado, nem esquecido, preciso contar, escrever, denunciar e cobrar tudo que perdi para sempre. A gravidade das violências sofridas foi contundente e a dor constante, incomensurável.

A reparação que a mim é devida independe de alegações. Quem tem de esclarecer os abusos cometidos são os militares, o comandante-em-chefe da nação e os legisladores. Falta a abertura dos arquivos para que, conhecendo a verdade dos fatos e os agentes dos crimes, possamos colocá-los no devido lugar na História do Brasil. Como exemplo da violência de Estado que queremos erradicar, porque são crimes hediondos que dizem respeito a todas as gerações, e não só às famílias dos atingidos.

* Texto escrito como referência ao lançamento da biografia do seu pai, Mário Alves, "Do reformismo à luta armada - A trajetória política de Mário Alves", de autoria de Gustavo Falcón.

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