terça-feira, 3 de março de 2009

A Crise do Carnaval de Salvador

Por Clímaco Dias*

Nos últimos anos venho falando que há uma crise no carnaval e, desta vez, não estou falando sozinho. Com diferentes visões, alguns estudiosos e vários setores governamentais também identificam esta crise. Outros têm o mesmo diagnóstico das causas da crise que eu tenho.

A crise do carnaval é bem mais complexa do que a simples presença de blocos de cordas. Na verdade, do final da década de 90 para o momento atual, as cordas tiveram uma abrupta diminuição. A Barra, neste período mencionado, já chegou a abrigar 45 blocos alternativos e hoje não tem nem a metade deste montante.

Não quero dizer que as cordas não são um problema, mas a análise das cordas deve ser feita com muito cuidado. De que adianta “30 Gerônimos” em trios independentes e um Bell cercado de cordas? Com o fim das cordas, a parcela da classe média que vai botar o pé no asfalto vai ser ínfima, pois esta tende a migrar para os camarotes e, como o carnaval de Salvador, desde a sua profissionalização, é o único carnaval do Brasil baseado em meia dúzia de estrelas, essas estrelas irão fazer seu espetáculo, como já o fazem, para o público dos camarotes.


A crise do carnaval de Salvador deriva do fato de a festa ser centrada em alguns artistas, a saber: Ivete, Durval, Bell, Cláudia Leitte e, secundariamente, Carlinhos Brown, Daniela Mercury e Margareth Menezes. Eles dominaram a festa não só pelo poder econômico, mas, sobretudo, pelo grande apelo popular que carregam. E isto faz com que muitas alternativas para a crise fracassem rapidamente.


Um exemplo já foi citado, o caso do trio independente. No passado, quando o povo corria atrás do trio, a solução do trio independente como uma alternativa às cordas funcionaria perfeitamente. Hoje o povo corre muito pouco atrás de trio. O povo, na sua grande maioria, a mídia, os turistas, correm atrás de Ivete, Durval, Bell, Cláudia Leite, e, secundariamente, Daniela Mercury e Margareth Menezes e Carlinhos Brown.


Em todas as pesquisas, quando se pergunta o que motiva a pessoa a ir para a rua, mais de 70% das respostas envolvem esse grupo que hegemoniza, enquanto que menos de 5% fazem referência aos afros, afoxés, samba etc.


A crise do carnaval do Centro – que parece ter sido “descoberta” agora e que eu já falei em vários trabalhos acadêmicos, desde 2002 – começa com a deserção deste grupo daquele espaço. Daniela Mercury, mesmo quando ostentava o título de rainha do axé, nunca gostou do Centro da Cidade, embora dissesse para dois milhões de pessoas que compraram o seu CD que “a cor desta cidade era ela”. Bell trocou um dia no Centro por mais um na Barra. Margareth nunca cogitou colocar os seus mascarados em qualquer lugar que não fosse a Barra. Gil, além de colocar o seu milionário camarote na Barra, desfilou o seu 2222 basicamente por aquela amenidade paisagística. Caetano, que certo dia disse que a Praça Castro Alves era do Povo, nunca mais pisou os pés naquele espaço e reforçou com a sua presença o modelo camarote.


O poder público fala em “mais democracia para a festa” e, em muitas ações, parece ter intenções sinceras de reverter esta situação. Mas, na verdade, o poder público é apenas um dos reféns do grupo hegemônico, pois sabemos que é muito difícil para qualquer governante adotar políticas que contrariem interesses de artistas tão populares.


Por outro lado, nestes últimos 15 anos, o carnaval da Bahia, que foi disseminado por todo Brasil através das micaretas, foi o carnaval que, segundo um representante deste grupo em entrevista à Folha de são Paulo, “vendia o beijo” como seu principal produto. O turista que passa a vir para a Bahia, salvo raras exceções, vem buscar este produto que só é vendido, talvez “em escala industrial”, por este grupo.


A mídia e o turista, principalmente, não buscam a tão decantada diversidade do nosso carnaval tão apregoada pelos culturalistas – vide o exemplo da Mudança do Garcia que, em sua passagem pelo Campo Grande, vê-se privada da cobertura televisiva, e é aí que o poder público fica acuado, pois qualquer política que altere as territorialidades atuais traz como um dos cenários o afastamento do turista e/ou a insatisfação popular. E isso para qualquer governante é um remédio muito amargo.


O modelo, que tinha orgulho de ser “novidadeiro”, entra em crise por falta de novidades. Lembram do Gera Samba, É o Tchan, Harmonia do Samba e outros que conseguiam inserção na mídia nacional e se integravam neste grupo, mesmo que de forma transitória? Lembram das danças que se “inventavam” a cada ano e que já chegou a catapultar algumas dançarinas ao “Olimpo” nacional? Acabou. E embora o modelo esteja em crise, os artistas aos quais me refiro ainda são os mais empoderados da festa.


A situação dos gestores públicos, mesmo sem assumir políticas reestruturantes de amplo espectro, tende a ser cada dia mais incômoda em razão de haver uma pressão cada vez maior de todos os segmentos pelos parcos recursos públicos que na festa atual são estimados em cem milhões de reais (governos federal,estadual e municipal).


O conflito público de Luís Caldas com o Secretário Márcio Meirelles é emblemático desta crise: Há uma crença simplista de que trio independente é a solução para democratizar a festa e aí o poder público passa a remunerar estes artistas. No caso de Luis Caldas, ele se recusou a compor o trio anos 80 e apresentou um projeto fora de prazo, segundo ele pelas mãos da primeira-dama, em que estipulava o seu cachê diário em 50 mil reais. Ora, a tendência de esvaziamento dos blocos, aponta para o crescimento dos trios independentes, mesmo sem a intervenção do poder público e, na medida em que a sociedade passar a encarar como atribuição deste o financiamento dos artistas dos trios independentes, as finanças serão ainda mais abaladas sem resolver qualquer problema da crise atual.


Os afros e afoxés, mesmo aqueles que têm estruturas profissionalizadas, na hora que apresentam problema no patrocínio, transferem a responsabilidade para o Estado e, como não há fiscalização do módulo hegemônico, muitas organizações carnavalescas afrodescendentes entendem como discriminatória qualquer iniciativa de fiscalização mais rigorosa, como foi o caso da crise com o Ministério Público quanto à distribuição de verbas no carnaval de 2007.


O potencial de arrecadação do poder público é o canto de sereia preferido dos culturalistas e lobbistas desde o início da década de 1990. Recentemente, o publicitário Nizan Guanaes ganhou uma licitação pública que lhe dava o direito de fazer a captação de patrocínios para o poder público. Em 2008 foram captados quase 9 milhões , cifra que não podia ser considerada próxima do decantado potencial, mas, por ser o primeiro ano foi encarada pela crítica até com certo otimismo. Em 2009, a captação despencou para 5,5 milhões, e o captador atribuiu a responsabilidade à crise mundial, aos conflitos entre o partido do prefeito e o partido do Governador e a captação pública, mais uma vez, não saiu do lugar que sempre esteve.


A crise parece ter alcançado uma parte do segmento de camarotes, sobretudo os médios e pequenos, que logo após o fim da festa já começou a reivindicar isenções das taxas e impostos da prefeitura.


O lado hegemônico, embora apresente a Caco de Telha com faturamento perto de 10 milhões de reais, também reivindica investimentos públicos e, em matéria de Luana Nunes no jornal da Metrópole, destaca-se o seguinte trecho: “O Carnaval ‘popular’ de Salvador pode estar com os dias contados. Donos de blocos já pensam em criar um circuito exclusivo e particular, o chamado ‘indoor’, caso o governo e a prefeitura não invistam mais na festa. [...] ‘É possível sim, que os blocos se organizem e façam um carnaval ‘indoor’. Com isso, o Carnaval de Rua, nos moldes de hoje, pode acabar’, reiterou Fernando Bulhosa. Jonga Cunha, coordenador do Carnaval da Saltur (antiga Emtursa), entregou os pontos. Para ele, enquanto o poder público não tiver dinheiro para pagar pelas grandes estrelas, os blocos têm autonomia para decidir qualquer coisa.”


O grupo hegemônico, na verdade, está avisando a todo setor público que ele não vai admitir qualquer ato ou política que contrarie os seus interesses e chantageia com uma possibilidade que deve apavorar uma boa parte dos gestores públicos: a ida para um espaço fechado do segmento mais popular do carnaval de Salvador.


Este é o meu diagnóstico do Carnaval de Salvador. Tenho inúmeras propostas para esta crise, mas como entendo que a maioria das propostas que estão sendo tentadas não apresentam bons resultados por erros de diagnósticos, estou apresentando este meu diagnóstico para a crítica pública, para que, mais tarde, eu possa melhorá-las ou renunciar em fazer qualquer proposição caso esta minha formulação não tenha o mínimo de aceitação social.

* Clímaco Dias- Professor do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da UFBA.

Fonte: http://www.aldeianago.com.br/content/view/2037/3/

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